COMENTÁRIOS E ANÁLISE CRÍTICA DOS DEC-LEI SOBRE EDUCAÇÃO ESPECIAL E SOBRE O GOVERNO DA ESCOLA

OS SEMI-DEUSES SÃO O DIABO. FILHOS DE UM DEUS E DE UMA GALDÉRIA
TERRÁQUEA NÃO SE CANSAM DE MOSTRAR OS MÚSCULOS E DE BRANDIR A ESPADA À
ESQUERDA E À DIREITA, COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ. NINGUÉM OS PÁRA. A
SUA POPULARIDADE VEM DE SEREM IMPOPULARES; EXIGEM ADORAÇÃO, VENERAÇÃO,
MAS DESPREZAM OS QUE LHES FAZEM A VONTADE. SÃO O DIABO….

O
Dec-Lei nº 319 (aquele que, desde 1991 regulava o apoio a alunos com
NEE e que foi agora revogado) era um dispositivo legal que respondia de
forma inovadora aos desafios que eram colocados na época em que foi
criado. Tinha em conta a realidade do seu tempo e as perspectivas
técnicas e científicas mais actuais.
A usura e as alterações
inevitáveis da vida em sociedade desgastaram-no; era urgente reformular
um conjunto muito vasto de conceitos nele explicitados, e sobretudo
alterar significativamente muitos dos procedimentos que o hábito
transformara em processos burocráticos sem qualquer sentido. Na
Administração da Educação, surgiram duas grandes tendências: a que
pretendia melhorar a burocracia, porque a qualidade dos procedimentos
seria sempre fugidia ao seu gosto e competência para encontrar em
simples papéis, relatórios, etc., tudo o que seria necessário para o
desempenho eficaz das suas responsabilidades; e a que pretendia
corrigir procedimentos e integrar efectivamente o apoio a todos os
alunos num programa de intervenção global da escola, porque não
acreditavam que melhorar uma burocracia sem sentido pudesse ser uma boa
solução para dar um significado novo à acção da escola.
A primeira
tendência, a dos burocratas que não sentem necessidade de perceber nada
a respeito da educação, da educação especial e de educação inclusiva,
que sentem uma necessidade compulsiva de reduzir as acções educativa a
grelhas e a outros instrumentos mais ou menos infantilóides, ganhou. O
Dec-Lei nº 3/2008 satisfaz todas as suas necessidades: já podem
tranquilamente visitar as escolas e garantir com toda a autoridade,
mesmo sem saber nada daquilo sobre que falam, que não são 20 os alunos
a apoiar, mas 6 ou 7. Estão felizes. Era este o seu principal
objectivo, e não foi em vão que lutaram por ele.
O problema é que
isto resolve o problema da Administração da Educação e dos seus
elementos menos bem formados, mas não resolve nem se aproxima sequer da
solução dos problemas das escolas. Dá competência a quem não a tem, nem
a quer ter, porque é possível controlar as opções das escolas a partir
de uma base de dados. Em boa verdade, qualquer computador pode fazer o
trabalho de verificar se o aluno A ou B foi devidamente integrado no
sistema de apoio especializado.
De facto, o Dec-Lei anterior (o tal
319) correspondia, digamos assim, a pneus novos em folha, de grande
qualidade, os melhores do seu tempo; o carro podia, então, percorrer
caminhos difíceis, cheios de buracos e de surpresas inesperadas: os
pneus eram bons. O uso e os maus tratos gastaram esses pneus; agora são
pneus carecas, que derrapam à mais pequena contrariedade. E o que
fizeram os senhores condutores? Trocaram pneus novos de qualidade,
carecas mas de qualidade, por pneus recauchutados sem qualquer valor.
Temporariamente, evitarão derrapagens. Mas não proporcionarão uma
viagem de qualidade.
Aquilo que precisávamos era de trocar pneus
velhos e gastos por pneus novos e mais adequados às estradas, caminhos,
etc, de hoje. A opção foi recauchutar.
O Dec-Lei nº 3/2008 (de
educação especial, actual) não tem, por isso, erros, uma vez que a
recauchutagem (o palavreado, a nova roupagem linguística) foi feita com
algum cuidado. Esse Dec-Lei É UM ERRO. É uma opção errada: uma recauchutagem burocrática e completamente inútil no nosso tempo e sobretudo para o futuro.
Ao
tentar evitar a excessiva catalogação de alunos com deficiência, aquilo
que estabelece é que se cataloguem menos. O erro continua, só que será
menos frequente. Só que para ser menos frequente os alunos têm de se
submeter a processos de catalogação muito mais frequentes e invasivos
da sua dignidade, ainda que no fim se lhes diga que foi para nada que
se sujeitaram a esses processos de avaliação da marca que se esperava
poder colocar-lhes na testa. Haverá alunos que não preenchem os
requisitos do catálogo e, por isso, serão catalogados como tendo
problemas não catalogáveis para efeitos de um certo tipo de apoio.
Para
os alunos devidamente catalogados, haverá respostas também devidamente
catalogadas, de acordo com os princípios básicos e elementares da mais
hipócrita exclusão. Quando se responde às pessoas em função da sua
categoria, está-se inevitavelmente a promover a sua exclusão: quando se
diz, por exemplo, que uma determinada pessoa, sendo mulher e por ser
mulher, não deve fazer certas coisas, estamos a programar uma parte da
sua vida em função da categoria a que pertence e não em função de si
mesma; é este tipo de procedimentos que conduz à exclusão, das
mulheres, dos ciganos, em suma, dos não dominantes. O Dec Lei actual da
educação especial assume esta estratégia com convicção, conseguindo,
mesmo assim, e sem qualquer pudor dizer de si mesmo que promove a
inclusão.
Os novos pneus que precisávamos apontavam para
características diferentes. Sabendo-se que um grande número de alunos
com problemas não precisa de recursos especializados de apoio, ou que
seria insensato chamar recursos especializados àquilo de que
necessitam, deveria saber-se também que, só garantindo o apoio que
precisam é que conseguimos evitar que venham a pressionar as escolas e
os professores para acederem a apoio especializado. Deveria também
saber-se que a avaliação da necessidade de recursos especializados só é
correcta no confronto com a realidade de que o aluno não precisa deles,
mas de outros de outro tipo. Na ausência desta realidade, torna-se
necessário apelar a critérios externos à qualidade da educação, porque
se assume que a educação não tem nem deve ter qualidade bastante. É
esta a opção, ridícula como se vê, do Dec-Lei nº 3/2008.
O mais
grave é que, embora pudéssemos esperar que a legislação sobre o governo
das escolas, de algum modo, corrigisse este dislate, a nossa esperança
sai completamente defraudada.
A constituição de um Conselho Geral
por escola ou agrupamento só pode ter o objectivo de o tornar ineficaz
ou cacique (a mesma coisa com manifestações diferentes).
O Conselho
Geral podia muito bem ser um serviço local com as atribuições que lhe
estão destinadas, mas com intervenção na política de educação da
comunidade em que a escola está inserida mais do que na política de
cada escola. Por outro lado, deveria também dispor de recursos técnicos
para combate ao insucesso escolar, à fuga à escolaridade obrigatória,
para promoção do apoio educativo e formação de professores. Só que esta
opção significaria a partilha do poder com o governo…. mais do que
com cada escola isoladamente. O Conselho teria o poder de regular o
funcionamento das escolas, mas também corresponderia a uma estratégia
organizada de contestação dos abusos do poder central. A coragem,
enorme já o sabemos, de Suas Excelências não vai até este ponto.
POr
outro lado, a proposta de Decreto sobre o Governo das Escolas não opta
pela melhor solução para dotar a escola de meios adequados ao apoio à
aprendizagem de todos os alunos.
Resumindo, deveria centrar toda a organização das escolas na constituição de verdadeiras
equipas educativas. A organização das Equipas Educativas deveria ser de
molde a que todos os professores fizessem parte de uma única equipa,
admitindo-se em função de variáveis, neste momento difíceis de
controlar, que fizesse parte no máximo de duas equipas.
O
Conselho pedagógico deveria ser constituído pelos coordenadores destas
equipas e pelos coordenadores responsáveis pela promoção da qualidade
científica da escola (grupos disciplinares ou departamentos de
composição razoável). O Conselho Pedagógico deveria ser um Conselho
Científico-Pedagógico.
As equipas educativas são as responsáveis por
toda a acção educativa organizada para os alunos. São elas que
organizam os apoios, os clubes, as substituições de profs, etc.
Enfim,
talvez estejamos a ser governados por pessoas que têm o número privado
de Deus e só a ele consultem para decidir; mas, do meu ponto de vista,
são o diabo.

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