DESTA VEZ O PAPA NÃO ERROU

O que o Papa disse que está a irritar tanto alguns muçulmanos só é motivo de irritação porque questiona o cerne mesmo da opressão política que muitos povos islâmicos sofrem. O que ele disse não levanta qualquer problema. O problema tem a ver com o tempo em que o disse. E naturalmente com um dos exemplos que usou.
Li alguns excertos do seu discurso, o tal que está a provocar a ira dos opressores e a revolta parva dos oprimidos que se manifestam a queimar bandeiras. Basicamente a tese que o Papa defende é a de que Deus não aprecia a irracionalidade.
No século XVII e ainda durante muito tempo depois disso, a Igreja católica perseguiu cientistas por dizerem isso mesmo. Por exemplo, levou Galileu a ter de se defender perante a “Santa Inquisição”. E em boa verdade o que Galileu defendeu foi algo muito parecido com o discurso do Papa actual.
Uma das teses mais interessante de Galileu era a de que Deus teria criado o mundo com racionalidade matemática e ao homem teria dado inteligência bastante para a descobrir. Coerentemente com esta tese, Galileu defendia que quem conhecesse a obra de Deus, o Mundo com as suas leis, estaria mais próximo de conhecer Deus do que aqueles a quem Ele se tivesse revelado. Aqueles que falam em nome de Deus, falariam com as palavras que são capazes de usar e não com as palavras de Deus; aqueles que conhecem a Sua obra, conhecem uma parte importante de Deus, aquilo que Ele criou e que deu aos homens a possibilidade de conhecer. Fazer ciência, usar a razão seria portanto uma forma de agradar a Deus e de O conhecer.
Descartes, por seu turno, concebe um Deus geómetra que incutiu ao mundo leis geométricas que o governam; ao homem deu-lhe a coisa mais bem distribuída deste mundo: a razão, uma razão também geométrica. Não haveria portanto qualquer maldade em o homem usar a razão que Deus lhe deu para conhecer o mundo onde Deus o colocou.
Estas perspectivas acerca de Deus, da religião, da ciência e da razão libertaram os europeus da opressão tirânica daqueles que gostariam que a verdade fosse eterna para que o seu poder não durasse menos do que a verdade. Na verdade, fundaram aquilo a que se chamaria a Modenidade.
Não estamos em altura de defender acriticamente esta modernidade, e por isso o Papa aparece com algum atraso a falar deste assunto. Mas, ao fazê-lo, limita-se a ser um homem do nosso tempo.
A religião islâmica não é boa nem é má, tal como a cristã. De resto, ambas, mais a judia, têm os mesmo fundamentos culturais e civilizacionais. O problema da religião islâmica é que está a ser usada, tal como o fundamentalismo cristão evangélico do Presidente americano, para oprimir os povos que acreditam nela e a vivem com sinceridade.
O discurso do Papa não ataca o povo islâmico nem a religião islâmica, mas ataca aqueles que preferem a irracionalidade da guerra e de outras coisas, porque dessa irracionalidade depende a manutenção do seu poder.
Talvez o Papa devesse estar calado, talvez não devesse usar um argumento da época medieval contra a Guerra Santa, talvez pudesse usar o exemplo das críticas às cruzadas para espalhar a fé, talvez lhe ficasse melhor fazer uma crítica à história da Igreja católica, talvez… Bom, seguramente teria feito melhor se falasse da sua Igreja e não das outras: todas têm pecados bastantes para servir de exemplo para explicar o que não deve ser feito.
Mas, uma vez que optou, a meu ver mal, por falar da casa dos outros, seria bom que os outros não se limitassem a armar-se em parvos e se dedicassem a criticar a casa do Papa. Daí, não viria mal ao mundo, antes pelo contrário.

Deixe um comentário